sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Sorginkeria: Bruxaria Tradicional Basca


“Donostiarrák ekarridute
Guetariatyk Akerra
Kanpantorrian ipiñidute
Aita Santutzát Dutela...”


- Cântico de invocação de Akerra, o Deus Bode ( 1 ).

O País Basco, ao norte da Espanha, chamado Euskadi ( uma região politicamente autônoma, mas não totalmente independente ) possui uma cultura única não só na Europa, como no Mundo, por motivos que dividem até hoje não só historiadores como estudiosos de outras áreas. Compõe, junto a demais províncias, a chamada “Euskal Herria” ( A Grande Nação Basca ), envolvendo todos os territórios de cultura e tradição basca, divididos em dois blocos: Hegoalde, o “País Basco Peninsular”, com suas províncias: Biskaia, Áraba, Nafarroa Garaia e Gipúzkoa; e Iparralde, o “País Basco Continental”, do outro lado dos picos pirenaicos, já no sul da França, composto pelas províncias de: Zuberoa, Lapurdi e Nafarroa Beherea. O povo basco é o mais antigo do continente europeu, anterior às invasões indo-européias, e mantém, até hoje, o mesmo idioma falado há mais de 4 mil anos: o Euskera. Uma outra peculiaridade dos bascos está em suas lendas e mitos: apesar de manterem crenças em elementais da natureza, como outros povos, os bascos mantém uma relação com tais Espíritos bem mais próxima e natural. Rituais e oferendas aos Gauazkuák ( "Os da Noite", seres mágicos guardiões dos Antigos Mistérios ) são comuns, e até hoje, as Sorgiñák ( Bruxas, em euskera ) celebram o Akelarre ( "Prado do Bode": culto Feiticeiro ao Deus Bode ) naquelas terras. As Sorgiñák são, na verdade, o elo entre os Gauazkuák e os Eguniekuák ( "Os do Dia", compreendendo as pessoas comuns, os não-Bruxos ); essa qualidade limiar faz das Bruxas Bascas seres, ao mesmo tempo, naturais e sobrenaturais.

Nos Akelarres são cultuados os Ireluák ( Espíritos ), tais como: Egoarák ( os Ventos, Filhos da Sorgiña Aizia ); Mamurrák ( os Insetos, muito prestativos, trazem a Boa Sorte ); Gaueko ( Deus da Escuridão, Senhor dos Mistérios, que castiga todo aquele que ousa menosprezar a Noite ); Inguma ( Senhor dos Sonhos, que é saudado com uma oferenda de um jarro de água debaixo da cama, proporcionando sonhos premonitórios...já àqueles que o desagradam, causa pesadelos terríveis ); Iratxoák ( Duendes ); Jentilák ( os Gigantes pré-históricos, que viviam nas terras altas e não conheciam o ferro. O mais conhecido deles é o Olentzero, que traz presentes na noite do Solstício de Inverno – possível origem do Papai-Noel ); Mairuák ( Gênios construtores dos cromelechs, os círculos de pedras ancestrais ); Lamiák ( Ninfas ou Fadas que vivem junto às águas e em grutas subterrâneas, são tidas como construtoras de pontes ); Mamarro ( Duendes travessos, mas que podem servir ao ser humano ); Sán Martín Txiki ( São Martin Pequeno, que se trata do espírito de um padre católico, incorporado pelas crenças medievais sincréticas das Sorgiñák como um elemental a mais ); Galtxagorriák ( “Os de calção vermelho” ) e os Gorritxikiák ( “Os Vermelhinhos” ), também são duendes que auxiliam o trabalho doméstico das pessoas; Basaiaun e Basandréd ( Senhor e Senhora dos Bosques, protetores das florestas ), Ilargia Amandréd ( Avó Lua ), Deusa Ancestral, assim como Amalurra ( a Mãe Terra ); Ortzi ( Deus celeste, Senhor dos raios ); Janicot ( Deus do Akelarre, uma das personificações do Deus Bode ); Benzózia ( a Diana dos bascos, Deusa da Lua e da Magia ); Ehistari Beltza ( “O Caçador Negro”, Deus das Florestas, associado ao celta Gwyn Ap Nudd, ou Herne o Caçador ); Jainkoaren Bégia ( o "Olho de Deus", Espírito Solar, mais tarde cristianizado ), entre muitos outros...

Mas, acima de todos, as Sorgiñák cultuam Mari, a Grande Deusa Bruxa, Senhora das Tempestades e Soberana da Terra, que habita nas Coevas ( grutas subterrâneas ) das montanhas, junto das Lamiák. Mari é representada pela Joaninha ( Marigorri: Mari a Vermelha ), e é venerada junto a seus maridos Divinos: Akerbeltz ( Bode Negro, em euskera ), Deus Chifrudo das Bruxas Bascas, Senhor da Vida e da Morte, Grande Mestre do Akelarre, que traz a Luz da Sabedoria ardendo entre os Seus Chifres; Sugaar, ou Sugoi ( também chamado Maju ), Deus Serpente com quem Mari se une sexualmente nos Céus, para produzir tempestades; e Herensuge, Deus Serpente de várias cabeças, muito invocado como benfeitor dos seres humanos. Mari também é chamada de Anbotoko Sorgiña ( a Bruxa do Monte Anboto ), Basko Marie ( Mari do Bosque ), entre outras denominações, e é tida como a Senhora das riquezas da Terra. Ela recebia oferendas de carneiros ou moedas para a obtenção de graças ou para proteção contra as tempestades, já que era a Senhora das Tormentas. É a Rainha de todos os Espíritos, e possui duas filhas ( em alguns locais, são considerados filhos ): Mikelats e Atarrabi. Mari se apresenta de várias formas: como uma Dama elegantemente ataviada, ou como uma Deusa sobre um carro puxado por quatro cavalos, percorrendo os céus...também aparece como uma belíssima mulher envolta em chamas, voando pelas alturas, ou então coroada pela Lua Cheia...também surge na forma de uma bezerra, de um corvo, ou como uma nuvem branca, um arco-íris, etc. É a Suprema Divindade da Sorginkeria, Deusa que condena a mentira, o roubo, a vaidade exacerbada e fútil, a falta de ajuda mútua. As pessoas acabam sendo castigadas com a privação ou a perda do que foi objeto de mentira e usurpação. Mari se abastece à conta dos que negam a verdade e dos que afirmam mentiras: ezagaz eta baiagaz ( abastece-se com a negação e com a afirmação mentirosa ).

As crenças mágicas das Sorgiñák são profundamente animistas, e se baseiam na relação entre o material ( berezko ) e o espiritual ( aideko ). Berezko é de característica manifesta, externa, enquanto Aideko é visto como latente e interior. Essa dualidade, sempre presente na Sorginkeria ( a Noite e o Dia, os vivos e os mortos, a Lua e o Sol, etc. ), está presente também no conceito de Adur e Indar, que é a base da compreensão de Mundo dos antigos bascos. Adur é o potencial latente de alguma coisa ou ser vivo, enquanto Indar é seu poder manifesto e ativo. A Feitiçaria, segundo as Bruxas e Bruxos Bascos, é exercida através de tais conceitos, que ensinam que tudo pode ser conectado ao Irelus ( Espírito ) de algo ou alguém pelo Adur e pela semelhança.

A Feitiçaria das Sorgiñák envolve práticas de magia simpática ( “semelhante atrai semelhante” ) em que moedas representam aqueles que serão enfeitiçados, através dos rostos humanos ali cunhados. Tais moedas são lançadas ao fogo. Também se utilizam de plantas e árvores consideradas sagradas, como o carvalho ( Aritza, símbolo da Força e resistência do Povo Basco ); a flor do cardo ( Eguskilore, ou “Flor do Sol”, em euskera ) que é pendurada na porta de casa, pelo lado de fora, para manter a presença do Sol, mesmo durante a Noite, afastando assim, os Espíritos malignos; o espinheiro ( Elorri ); o loureiro ( Ereñoa ); a faia ( Pagoa ), etc. Animais como o bode ( Akerra, o Deus das Bruxas ), a joaninha ( Marigorri, símbolo de Mari ), a abelha ( erlea, que é pecado matar ), o asno ( Asto ), entre outros, desde sempre foram considerados sagrados pelas Sorgiñák.

Há também uma crença forte no poder do Begizko ( Mau-Olhado ), considerado um Dom malévolo próprio de determinadas Bruxas. Para combater o begizko, a Bruxaria Basca ensina a confecção dos kuthunák ( bolsinhas de pano com ingredientes mágicos dentro ), usadas penduradas ao pescoço ( são principalmente recomendadas às crianças mais novas e bebês de colo, que são vítimas mais comuns do Mau-Olhado ). Tais amuletos continham elementos já conhecidos, tais como o alho e a arruda, assim como também pedras, corais, pedaços de cordão umbilical e, até mesmo, excremento de galinha. Objetos como cartas de baralho e bolas de cristal, popularmente associados às Artes Divinatórias, são utilizados em sortilégios e rituais mágicos. Também se utiliza carvão, figas, ervas como estramônio, beladona, e animais como o sapo ( tais ervas, assim como o veneno do sapo, são empregados em ungüentos de vôo das Bruxas ).

O sapo também é utilizado em malefícios. Segundo o relato dos antigos, tais feitiços e poções maléficas eram feitos nos Akelarres, com a supervisão do Mestre Negro. Pós Maléficos Enfeitiçadores eram embrulhados na pele de um sapo e enviados à pessoa que se desejava matar. Tais Pós Maléficos eram feitos com ingredientes mágicos, cuja colheita e preparação eram conduzidas pelo Grande Akerbeltz, personificado por um Bruxo de Alto Grau, chamado El Maestro, o Mestre Negro. Esses filtros malignos eram espalhados pelos campos daqueles que deviam ser amaldiçoados. O Mestre do Akelarre indicava a seus acólitos o dia propício, ordenando aos Bruxos para irem em equipes em busca dos elementos que compõe o Feitiço: sanguessugas, sapos, cobras, lagartos, lesmas, caracóis e peidos-de-lobo ( pequenas bolas que crescem na terra, como túberas, e de onde sai um pó cinzento quando apertadas ). Os Sorgins traziam os ingredientes para casa, de madrugada, e com eles, preparavam os venenos. A poção, que era feita no Akelarre, ou mesmo em suas casas ( mas sempre com a supervisão do Mestre Bode ), possuía poderes de dessecação e morte. Ao terminarem a confecção do veneno, os Bruxos deixavam o Akelarre, sob a forma de animais, e com o Bode Negro à frente. O Sorgin Miguel de Goyburu disse que levava o caldeirão dos pós maléficos, os quais eram espalhados nos lugares condenados, enquanto o Mestre Negro dizia: “Pós, pós, que tudo fique perdido!”, ou então: “Que metade fique perdida”. E as Sorgiñák e Sorgins mais experientes, iam repetindo: “Que tudo fique perdido ( ou metade somente ) e que meus bens fiquem a salvo!”. Os Bruxos evocavam o Vento Egoya, que soprava do sul no início do Outono, para espalhar os males pelos campos dos inimigos. Mas muitos malefícios são feitos com objetos simples e cotidianos, tais como as já citadas moedas, ou mesmo, com velas. As Sorgiñák lançam maldições acendendo velas, que são consagradas e batizadas com os nomes daqueles que desejam castigar, enquanto conjuram o Fogo, fazendo com que pereçam junto com a cera que lentamente se esvai, consumida pela chama...

Quando da cristianização das terras bascas, os párocos cristãos realizaram sermões condenando as práticas pagãs. Isso pouco alterou a vida das Sorgiñák, que permaneceram com os ritos da Tradição. Todas as Famílias Bascas mantinham rituais e costumes antigos em suas casas, como o de saudar os Espíritos Ancestrais. Parte destes cultos envolvia o sepultamento dos mortos da Família em casa, onde eram venerados como os Lares antigos. A Casa ( Etxea ), era vista não apenas como habitação dos vivos, mas também, como Templo do Culto aos Ancestrais, aos Deuses e Espíritos do Lugar ( Anima Loci ); era o centro de convivência doméstica, mas também o centro espiritual e energético dos bascos. Os padres buscaram evitar que tais cultos continuassem, levando as famílias a sepultar seus mortos em cemitérios, nas terras da igreja. No entanto, os cultos pagãos permaneceram dentro de casa, conduzidos pela Etxeko Andréd ( Senhora da Casa, de "Etxe" = Casa; e "Andréd" = Senhora ). Os padres católicos se viram, então, obrigados a ceder espaço em suas igrejas para a construção de capelas especiais, chamadas Yarleku, pertencentes, cada uma, a um Clã distinto da comarca. Os rituais Pagãos das Bruxas Bascas invadiram as igrejas cristãs.....Somente a Etxeko Andréd possuía a chave do Yarleku de seu Clã, e apenas ela podia celebrar os ritos ali dentro.

Em Iparralde, no País Basco francês, fica a região do Labourd, conhecida como Terra de Bruxas, tamanha a concentração de Clãs de Sorgiñák naquelas terras. No início do século XVII, as autoridades locais pediram ao rei da França, Henrique IV, que enviasse um inquisidor. Em 1609, o rei manda o então conselheiro do Parlamento de Bordéus, Pierre De Lancre, para resolver o caso. Baseado nos processos inquisitoriais que se seguiram, ele publicou livros sobre o tema, como o "Tableau de L'inconstance de Mauvais, Anges et Démons", o qual faz questão de ilustrar com gravuras, feitas pelo pintor Ziarko. Tais imagens, ao serem vistas pelas Sorgiñák e Sorgins de então, foram por estes reconhecidas como retratos de suas tradições e rituais de Bruxaria ( assim como ocorreu com as Streghe Italianas, ao verem as gravuras que Francesco Guazzo imprimiu em seu livro, “Compendium Maleficarum”, escrito com a pretensão de denunciar as práticas Bruxas ). Com a chegada de De Lancre, grandes caravanas de Famílias de Bruxas atravessaram os Pirinéus, indo dar os costados em terras de Espanha e Baixa Navarra. Muitos deles alegavam estar peregrinando aos santuários cristãos de Montserrat ( Catalunha ) e de Santiago de Compostela ( Galiza ). Muitas dessas Famílias de Bruxas se fixaram por toda a Espanha, ou mesmo partiram para o Novo Mundo, se assentando em países como Canadá e Argentina, onde até hoje, existem descendentes dessa Diáspora Basca.

Um dos Sorgins ( Bruxos bascos ) mais conhecidos da História de Euskal Herria foi Johanes de Bargota, que viveu no século XVI. Bargota se formou padre em Salamanca, onde também foi iniciado na Coeva de Bruxos local. Retornando ao País Basco, buscou o intercâmbio junto às Sorgiñák, sendo iniciado nos Mistérios do Akelarre do Monte de Oca, pelas mãos da Bruxa Endrogotto. Foi o primeiro a registrar ensinamentos mágicos da Sorginkeria, a Bruxaria Basca, que influenciaram muitas Tradições da Arte, inclusive a Wicca moderna. É atribuído a um manuscrito de Bargota, que teria sido mostrado a Gerald Gardner, a criação de textos de seu Book Of Shadows, como a sua versão de A Runa das Bruxas, que teria sido originalmente, escrita pelo Bruxo Bargota. Mesmo frequentando o Akelarre, ele não deixou de celebrar a missa na igreja local. Era comum vê-lo perambular pelas ruas de seu vilarejo, logo de madrugada, retornando do Monte de Oca, a caminho da missa dominical. Ele adorava o Bode Negro no Akelarre, durante a noite, e adorava o Cristo Branco na Missa, durante o dia. Depois de ser denunciado às autoridades eclesiásticas, foi preso pela Inquisição de Logroño, junto com outros acusados de Bruxaria. Johanes, no entanto, foi poupado da morte na fogueira, mas teve usar um sambenito ( espécie de túnica ), onde se lia "Diós perdonad al nigromante" ( Deus perdoe o feiticeiro ), o que era um motivo de escárnio, uma vergonha, ainda mais para um padre. Johanes teve também toda sua biblioteca de livros de Magia, Necromancia e Conjuros queimada pelos inquisidores... diziam as gentes de Bargota que, junto com os livros, se esvaiu consumido pelas chamas o Bruxo, permanecendo o clérigo... mas, até o fim de seus dias, Johanes lembrou com lágrimas nos olhos dos tempos em que voava livremente até o Akelarre do Monte de Oca, ou o Akelarre às margens do Rio Ebro, montado em uma nuvem magicamente conjurada, que o transportava pelos ares... e foi justamente a imagem do Bruxo Johanes que permaneceu viva pelo correr dos séculos, figurando inclusive no Brasão da cidade de Bargota; Outras Sorgiñák, no entanto, foram mortas nas fogueiras, entre elas, Necate de Urrugne, presa por De Lancre, e que era tida como Maestra de um Akelarre muito freqüentado; também Jeanette de Belloc ( chamada Atsoua, “A Velha” ), assim como Oylarchahar e Marie Martin de Adamcehorena, igualmente presas pelo inquisidor; E assim como também Maria Miguel de Orexa, Bruxa Basca do século XVI. No vale de Araiz, em 1559, Maria Miguel de Orexa, de 26 anos, foi submetida a cuidadoso interrogatório, pelo qual se apurou que ela tinha sido iniciada na Bruxaria por sua avó, aos 10 anos de idade. A anciã estava à beira da morte: a Tradição afirmava, então, que uma Sorgiña não poderia deixar este mundo sem transmitir suas aptidões, seu Dom, a outra pessoa. Maria Miguel contou que tinha sido levada a um Akelarre. Depois de untada com o Ungüento Mágico, voara com 15 outras pessoas, para o local do encontro. Na costa de Urrizola, os inquisidores encontraram duas poltronas, cada uma com uma figura sentada: de um lado, um homem com cabeça de bode e, do outro lado, uma mulher. Maria os identificou como Belzebu e sua esposa. Analisando o nome Belzebu, chegamos ao significado de “Senhor da Terra”, “Senhor do Submundo”, da terra negra, da matéria, das grotas infernais...tais conceitos levam a Akerbeltz, o Bode Negro, Senhor das Bruxas, o Grande Mestre Sabático... E lembremos também que, em se tratando das antigas Bruxas, era preferível entregar-se à morte no fogo, alegando prática satanista anti-cristã, a dizer os nomes de seus Deuses...

A Bruxaria Basca, uma Tradição Ancestral, cujas raízes se perdem na Pré-História, dado que é praticada desde os tempos remotos em que o Euskera começou a ser falado, continuou sendo vivenciada através dos séculos... Preservada da sanha assassina da Inquisição, que curiosamente, chegou a defender as Bruxas ao invés de perseguí-las ( como algumas correspondências da época, entre bispos locais e inquisidores nos demonstram ), a Tradição da Sorginkeria permaneceu viva até épocas bem recentes, como alguns testemunhos modernos nos podem revelar, como este publicado por Julio Caro Baroja em sua obra “As Bruxas e o Seu Mundo”, e que lhe foi relatado por um médico cirurgião de Madrid, nascido em Deva, Guipúzkoa:

- “ Uma noite de Verão, há três ou quatro anos ( cerca de 1929 ), ia eu de automóvel de Deva a Bilbao, pela estrada da encosta. Entre Lequeitio e Ispaster, muito perto desta aldeia, vi no meio da estrada uma forma negra e imóvel, apesar das minhas repetidas buzinadelas para chamar a sua atenção e a afastar da estrada. Só a alguns metros dela reconheci que se tratava de uma mulher. Irritado com a sua atitude, parei e perguntei-lhe em basco: ‘Por que é que não se afasta quando se buzina?’ A mulher ficou um momento indecisa, depois desatando a rir, disse-me: ‘Não vê que estou no Akelarre?’ Mal tinha dito estas palavras, ouvi as vozes de outras pessoas vindo de um prado vizinho, para onde ela se dirigiu correndo. Continuei o meu caminho, sem prestar mais atenção a este incidente.” ( 2 )

A percepção de Mundo das Sorgiñák, as Bruxas e Bruxos do povo basco, é de uma natureza anterior à das civilizações de carácter expansionista-imperialista. Envolve uma forma de viver imersa na Natureza, onde o ser humano é visto como parte Dela, e não como seu suposto “controlador”. Não existem fronteiras entre o material e o espiritual, pois tudo está interligado...e os Deuses e Espíritos, sempre estão presentes, seja nas altas montanhas, nos ventos que cortam o Prado do Bode, nos campos de um verde inesquecível, no Mar impetuoso, nas praias, em sua maioria, rochosas, nas ancestrais florestas de carvalhos....e mesmo nos caseríos ( basérria ) dos antepassados, morada e templo daqueles que já foram considerados o povo mais antigo do Mundo. Para eles, tudo é Sagrado, pois tudo possui alma, e tudo existe, bastando ter nome. Como dizem as Sorgiñák: “Izena zuen guztia omen da” ( Tudo o que tem nome existe ).

A Tradição desse povo ancestral ainda vive, não só na Terra Sagrada de Euskal Herria, como também onde quer que seus filhos e descendentes tenham peregrinado...pois, não importando o quão distante e estrangeira é a terra em que se está, o basco possui uma herança que jamais esquecerá, ainda que não a conheça. Tal como o Carvalho da cidade de Guernica, ao redor de cujas raízes os bascos, desde tempos remotos se reuniam para tomar as decisões mais importantes de seu povo, e que sobreviveu incólume ao bombardeio que destruiu toda a cidade na Guerra Civil, em 1937, essa gente guerreira parece marcar presença não só no início de Tudo, como também viverá pelos séculos sem fim que despontam adelante...E a Força dessa Tradição ecoa não só nas lendas, danças ou ritos mágicos da Sorginkeria....Ela está presente no sangue, na alma e na forma de ser e de viver do povo. Como disse Victor Hugo, um admirador dessa cultura ancestral:

“Nasce-se basco, fala-se basco, vive-se basco e morre-se basco”.

Por: Raven Luques McMorrigú.

Fontes:


"No Antro das Bruxas de Zugarramurdi" – de Gilberto de Lascariz:

www.projectokarnayna.com/bruxaria-hispanica/zugarramurdi


"As Bruxas e o Seu Mundo" – de Julio Caro Baroja – Editorial Vega.

“Bruxaria e História – As Práticas Mágicas no Ocidente Cristão” – de Carlos Roberto Figueiredo Nogueira – Editora Ática.


( 1 ) - “Os de Donóstia trouxeram
um Bode de Guetàry
o puseram na torre do sino
e dizem que é o Santo Padre”

- “Iru Damatxo”, canção popular das Bruxas Bascas.

( 2 ) – “As Bruxas e o Seu Mundo”, pp. 317, 318.


9 comentários:

Fernando disse...

Perfeito seu texto: você sintetizou tudo sobre a bruxaria basca de forma objetiva e esclarecedora. Há os originais desse Runa das Bruxas feitas por Bargota??? Saluto!!!

Raven Luques McMorrigú disse...

Salud querido!
Gracias por tuas palavras!
Os escritos de Bargota permanecem guardados, longe do público. Ao que parece, um dos escritos, e segundo os relatos, uma folha apenas, foi mostrada ao Gardner, e baseado nisso, ele compôs o texto "Witche's Rune". O texto contido nesse escrito não veio a conhecimento do público, mas pela análise da Runa das Bruxas, desde o prefácio "Eko Eko Azarák, Eko Eko Zomilák" até a parte final, conhecida como "Runa Bagabi" ( Bagabi Lacha Bachahé... ), possuem origens bascas defendidas por alguns especialistas...
Há inclusive um estudo ( em francês ) que analisa palavra por palavra da Runa Bagabi, localizando suas origens no Euskera, que em breve estarei mencionando em algum artigo.

Bendiciones del Cuervo y del Aker...

P. disse...

Excelente blog, esta adicionado nos meus blogs. :)

rubens zárate disse...

excelente.

Persona Rocha disse...

Muito bom o seu blog! Adicionarei um link dele no meu...
Parabéns!!!

fernando rifan disse...

Vistes o sr. Nicholaj Frisvold, iniciado em sorginkeria, no seu último, livro falando das origens bascas do culto de pomba-gira? O que tu pensas disso? Saludos!

Raven Luques McMorrigú disse...

Saludos Fernando!

Não cheguei a ver o supracitado livro, mas li alguns textos desse autor, os quais gostei muito. Vejo como perfeita tal colocação dele, a qual podemos corroborar com as tradições mágicas populares dos bascos envolvendo o culto às Lámias, que são Fadas Guardiãs de coevas e riachos, tidas como construtoras de pontes e círculos de pedras. A Magia envolvendo tais Espíritos femininos, que formam a coorte de Mari, a Grande Deusa Bruxa, realmente é una com as práticas mágicas das Pombas Giras, que são Bruxas Vermelhas, Espíritos do Fogo Carnal e Espiritual, tanto quanto Mari, também conhecida como La Roja (A Vermelha). O mito da Pomba Gira surge de antigas práticas rituais medievais ibéricas envolvendo conjuros a Bruxas célebres, tais como Doña María de Padilla,que tornou-se Maria Padilha aqui no Brasil, e de facto é uma Bruxa e Feiticeira das mais veneradas desde o medievo, cujas tradições atingiram não só o Brasil como também as Ilhas Canárias, onde até hoje encontramos conjuros nos quais Padilla é invocada. O mesmo se aplica àassociação com as Mouras (Las Moras), Bruxas Espirituais invocadas em rituais mágicos (um dos nomes pelos quais Lagarrona, A Bruxa de Évora, era conhecida, é justamente "A Moura Torta",ou seja, a Bruxa peregrina do Caminho Tortuoso, que serpenteia livremente pela Sombra e pela Luz...).

Hasta!

fernando rifan disse...

Saludos Everson, obrigado por responder meu questionamento, foi realmente esclarecedor. Estou a muito buscando referências e praticantes sérios de sorginkeria, e além de ti, encontrei esse outro sitio:

http://brujeriatradicional.blogspot.com/

Como não possuo grande esclarecimento no tema, não sei filtrar se são bons ou não.

Tú os conheces? O que podemos falar sobre esse tema.

Se preferires podes me escrever em privado: fernandorifan@gmail.com

Muito obrigado pela atenção e parabéns pelo excelente trabalho.

Hasta! Fernando

Raven Luques McMorrigú disse...

Holla Fernando!
Não conheço o site que vc me enviou, assim como o grupo que ali se apresenta, portanto, nada posso dizer sobre eles, inclusive por nunca ter ouvido falar dos mesmos, assim como nunca ouvi falar de tal linhagem como sendo pioneira em Sorginkeria no Brasil.

Como tenho pouco tempo disponível atualmente para acessar a Internet, na medida do possível trocarei idéias contigo por e-mails, blz?

Hasta!